No Ateliê Mil Agulhas, acreditamos que a alfaiataria é a arte de contar histórias com tecidos. E se há uma peça no vasto léxico do vestuário português que conta uma história de identidade, resiliência e engenho, é a Samarra Alentejana.

Muitos veem-na como uma peça de folclore, um item de museu. Nós, em Coimbra, olhamo-la com o respeito devido a uma obra-prima da alfaiataria popular. Longe de ser apenas um casaco, a samarra é um abrigo, um símbolo e um “palácio” portátil, nascido da planície infinita e da sabedoria de quem a habita.

Numa era dominada pela moda descartável, mergulhar na história da samarra é recordar o que é o verdadeiro slow fashion: uma peça de design genial, funcional e feita para durar uma vida inteira.

A Anatomia de um Abrigo Perfeito

O que é, exatamente, a samarra? É um casaco de homem, curto, amplo e sem cinto, tradicionalmente confecionado em tecidos pesados e escuros (preto ou castanho). Mas a sua alma reside em dois elementos que a tornam única no mundo: o material e o design da gola.

O Material: A Armadura de Lã A samarra era feita dos materiais mais puros e resistentes que a terra dava. O exterior era quase sempre de burel (pano de lã de ovelha, batido e escaldado para o tornar denso e impermeável, como o da Serra da Estrela) ou de feltro. Esta camada exterior era a primeira linha de defesa: era robusta, à prova de vento e de chuva.

O interior, por sua vez, era o conforto: um forro integral de pêlo de ovelha, que criava uma bolsa de ar quente, um isolamento térmico perfeito.

Uma jaqueta de inverno azul marinho com capuz de pele, apresentada em um ambiente nevado. Uma seção transversal da jaqueta é exibida, mostrando suas múltiplas camadas internas: camada externa, membrana respirável, isolamento térmico, outra camada de isolamento térmico, forro interno, e bolsos isolados. Setas e legendas apontam para as características da jaqueta, como capuz ajustável, costuras seladas, zíper impermeável, punhos com velcro e polegadura, e barra de saia antineve. O título "A Anatomia de um Abrigo Perfeito" está no topo.

A Gola: A Obra-Prima de Engenharia O que define a samarra e a eleva de “casaco” para “ícone” é a sua gola extraordinária. É uma sobre-gola imponente, também forrada a pêlo, que se abre sobre os ombros como um par de “asas” majestosas. Estas “abas” não são um adorno; são o coração do seu design funcional.

Nascida da Planície: Uma Resposta ao Clima

O design da samarra não foi desenhado numa secretária. Foi aperfeiçoado por gerações de pastores e lavradores para resolver um problema muito específico: como sobreviver no Alentejo.

A planície alentejana é uma terra de extremos impiedosos. É de um calor tórrido no verão, mas no inverno, é varrida por um frio cortante e uma humidade que se entranha nos ossos. O homem que passava dias e noites no campo, muitas vezes dormindo ao relento, precisava de uma peça que fosse tudo em um.

A samarra era essa peça:

Uma pastora idosa com um lenço escuro na cabeça e uma capa de lã preta tradicional, em pé num campo árido com um cajado. Ao fundo, um rebanho de ovelhas e algumas árvores esparsas sob um céu claro e um sol baixo.

Como Casaco: No frio ameno, usada aberta, era um casaco confortável.

⟢ Como Abrigo: No frio intenso, fechada, com o pêlo a proteger o peito, era uma barreira térmica imbatível.

⟢ Como Capa de Chuva: Aqui entra a genialidade das “abas”. Quando chovia, o pastor inclinava-se ligeiramente para a frente. A gola de pêlo, larga e espessa, cobria os ombros e a parte superior das costas, fazendo com que a água escoasse por ela, para longe do corpo e das aberturas do casaco, mantendo o tronco seco.

⟢ Como “Capuz”: Em caso de tempestade de vento ou frio extremo, a gola podia ser levantada, envolvendo a nuca, as orelhas e o rosto, criando um abrigo protetor para a cabeça.

⟢ Como Manta: À noite, era a manta e o travesseiro do pastor.

De Ferramenta de Trabalho a Símbolo de Estatuto e Identidade

Com o passar do tempo, como acontece com todas as grandes peças de design, a samarra transcendeu a sua função. Deixou de ser apenas o que o homem do campo usava, para se tornar quem ele era.

Ter uma samarra, especialmente uma bem-feita, com pêlo de raposa (em vez de ovelha, um sinal de maior riqueza) e burel de qualidade, tornou-se um sinal de estatuto e de orgulho. Era a “capa-palácio” dos homens abastados do campo, a sua peça de domingo, de feira e de romaria.

Tornou-se o símbolo máximo da identidade regional. Vestir a samarra era (e é) vestir o Alentejo. É por isso que, mesmo hoje, muito depois de ter perdido a sua função diária no campo, ela é preservada com uma reverência quase sagrada pelos grupos de Cante Alentejano, pelos ranchos folclóricos e pelas famílias que a guardam como uma herança.

Uma díptica contrastante. À esquerda, uma fotografia em preto e branco de um idoso pastor rústico, segurando um cajado simples, em um campo com ovelhas ao fundo. À direita, uma fotografia colorida de um homem jovem e elegante, vestindo um terno cinza, luvas pretas e segurando uma bengala futurista com detalhes azuis luminosos, em um ambiente de galeria de arte moderna.
Um alfaiate idoso e experiente, com barba branca e um sorriso acolhedor, apresenta orgulhosamente uma samarra tradicional ricamente bordada, em uma alfaiataria clássica. O ateliê está repleto de máquinas de costura antigas, tecidos, moldes e um espelho dourado, refletindo a atmosfera de artesanato e tradição.

A Lição da Samarra: A Alma da Alfaiataria Portuguesa

No Ateliê Mil Agulhas, olhamos para a samarra e vemos a essência pura do nosso ofício, despida de artifícios.

Esta peça ensina-nos que o melhor design não é o mais bonito, mas o mais funcional. Ensina-nos o valor dos materiais nobres e duráveis, como a lã pura, que envelhecem com dignidade. E, acima de tudo, ensina-nos que uma peça de roupa pode carregar a história, a sabedoria e a alma de um povo.

A samarra é o epítome do slow fashion antes de o termo existir. É uma peça de alfaiataria popular, criada sem pressas, para durar não uma estação, mas gerações.

É este o espírito que tentamos honrar em cada casaco que ajustamos e em cada peça que criamos de raiz no nosso ateliê em Coimbra. É a crença de que a roupa deve servir-nos, proteger-nos e contar a nossa história.

Já conhecia a profundidade da engenharia por trás desta peça? Qual é, para si, a peça de roupa portuguesa que mais carrega a nossa identidade?