Quando pensamos na Serra da Estrela, pensamos em montanhas imponentes, em neve, em rebanhos e num saber-fazer ancestral. No coração desta paisagem agreste, nasce um dos tecidos mais extraordinários e subestimados de Portugal: o Burel.
Durante séculos, este foi um segredo bem guardado pelos pastores. Hoje, é uma matéria-prima de eleição para designers, arquitetos e, claro, para quem ama a costura e a alfaiataria. No Ateliê Mil Agulhas, em Coimbra, somos apaixonados por materiais que contam uma história. E a história do Burel é sobre resiliência.
Vamos descobrir este tesouro da nossa serra.
A Alquimia da Lã: Como Nasce o Burel?
O Burel é, na sua essência, 100% lã de ovelha em estado puro. Tradicionalmente, é feito a partir da lã das raças autóctones da Serra, como a Bordaleira ou a Churra. Mas o que o torna diferente de qualquer outro tecido de lã não é apenas a matéria-prima, é o processo de transformação.
O fabrico do Burel é uma forma de alquimia têxtil que envolve várias etapas:
⟢ A Tosquia, Lavagem e Cardação: Tudo começa, claro, com a tosquia das ovelhas. A lã é lavada para remover impurezas e depois cardada — um processo que desembaraça e alinha as fibras.
⟢ A Fiação e Tecelagem: As fibras são transformadas em fio, que é depois tecido em teares. Nesta fase, o que temos é um pano de lã relativamente solto, grosseiro e ainda muito longe do Burel que conhecemos.
⟢ A Magia: A Pisoagem (Fulled Wool) É aqui que a verdadeira transformação acontece. O tecido de lã é levado para um pisão, uma máquina tradicional (antigamente movida a água) que faz duas coisas em simultâneo: bate o tecido com grandes martelos de madeira e escalda-o em água muito quente.
Este tratamento intenso e demorado provoca uma reação nas fibras da lã. As suas escamas microscópicas abrem-se com o calor e, com o atrito e a pancada, entrelaçam-se de forma permanente e irreversível. O tecido encolhe até 40% do seu tamanho original, tornando-se incrivelmente denso, compacto e coeso.
O resultado é o Burel: um tecido que deixa de parecer tecido para se assemelhar a um feltro espesso, mas com a estrutura e a resistência de um pano de pura lã.
Os “Super-Poderes” do Pano dos Pastores
Este processo complexo não era um capricho. Era uma necessidade. Para sobreviver na montanha, os pastores precisavam de um material que fosse uma verdadeira armadura contra os elementos.
⟢ Resistente à Água (Impermeável): A densidade das fibras feltradas faz com que a água “escorregue” pela superfície, em vez de ser absorvida.
⟢ Isolante Térmico: A lã é um isolante natural, e a densidade do Burel cria uma barreira excecional contra o frio e o vento da montanha.
⟢ Durabilidade Extrema: Este tecido foi feito para durar uma vida inteira, resistindo a rasgões, ao atrito e ao uso intensivo.
⟢ Ecológico e Sustentável: É 100% lã, biodegradável, renovável e de produção local.
O Renascimento: Da Capa de Pastor à Passarela
Durante décadas, o Burel foi visto como um material rústico, pesado, associado apenas ao campo. Mas, felizmente, o “segredo” foi revelado.
Designers e criativos portugueses olharam para este material humilde e viram o seu potencial infinito. O Burel renasceu das cinzas, mais moderno e colorido do que nunca. Deixou de ser apenas castanho ou preto; hoje, encontramos Burel numa paleta de cores vibrantes.
Este renascimento levou-o para áreas inesperadas:
⟢ Moda e Alfaiataria: É agora usado para criar casacos de inverno intemporais, sobretudos estruturados, coletes e blusões.
⟢ Acessórios: É um material de eleição para malas, mochilas, boinas e sapatos, devido à sua resistência.
⟢ Design de Interiores: É usado como revestimento de parede, em painéis acústicos (graças às suas propriedades de isolamento), em mobiliário e em decoração.
O Burel e a Alma da Alfaiataria: A Visão da Mil Agulhas
No Ateliê Mil Agulhas, em Coimbra, a nossa proximidade com a Serra da Estrela não é apenas geográfica, é filosófica.
O Burel representa tudo aquilo em que acreditamos: o “slow fashion”, o valor da matéria-prima, a durabilidade e o respeito pela herança.
Um tecido que é feito para durar 100 anos não pode ser costurado da mesma forma que um tecido de moda descartável. Trabalhar com Burel na alfaiataria é um desafio que adoramos. A sua espessura, densidade e peso exigem um saber-fazer muito específico. Exige agulhas fortes, uma tesoura de mestre e um conhecimento profundo de como estruturar uma peça que já tem, em si, uma grande estrutura. Não é um tecido para principiantes.
Quando criamos ou ajustamos uma peça em Burel, sentimos que estamos a honrar essa herança. O resultado não é apenas um casaco; é uma peça de investimento. É uma armadura moderna contra o frio, que carrega em cada fibra a história das nossas montanhas, moldada pelas nossas mãos para se adaptar perfeitamente à sua vida.
Já conhecia a fundo a história do Burel? E mais importante: estaria disposta a investir numa peça que pode durar mais do que uma vida? Conte-nos nos comentários!